Sábado, 26 de Dezembro de 2009

lugar das pias VI

«EVOCAÇÃO» É um texto de Fernando Galhano que julgo por bem transcrever aqui:«Lembro-me de em pequeno, passar todos os anos, com os meus irmãos um mês de férias, na casa dos avós, numa pequena aldeia do Baixo Douro, que se avista do combóio, aninhada no vale que sobe muito direito desde o rio à cumeada longínqua da serra do Montemuro.

O cavalito do moleiro esperava-nos fora da estação. E, montados à vez, seguidos das duas mulheres que levavam as malas à cabeça, lá fazíamos os 5 quilómetros de macadame branco.

Um  rabelo carregava em Porto Antigo, a velha casa de Revolfe, com a sua chaminé estranha, continuava misteriosa e sombria, nas suas paredes sem reboco; e dos poços do Bestança, na volta do outeiro, escondidos lá em baixo pela ramagem dos amieiros, só se viam nesgas de água. E, por fim, a ponte das Pias, a subida da calçada, a velha casa de cunhais de granito, com duas grandes salas em baixo, e quartos pequeninos de tecto masseira, sótãos escuros debaixo do telhado, e uma grande loja fresca com toneis de vinho sempre vazios. Mas é da cozinha que conservo recordações mais precisas. A lareira com um preguiceiro carcomido, a borralheira onde cantava um grilo que nunca se via, o forno que, no dia da fornada, escancarava a boca vermelha e ardente. a gente que chegava com recados, a caneca onde se enchia o copo que bebiam, o jantar dos caseiros ou dos trabalhadores à volta da mesa, em dias de trabalho para a casa. Pelo postigo da porta, sempre aberto, via-se passar a gente na calçada, e por ele vinham também, as novidades e bisbilhotices do lugar. Só quando o Silva barqueiro aparecia para receber os fretes, com as ceroulas brancas atadas nos tornozelos, vermelho e pingão, já no fim da volta, trazendo consigo a aventura do rio que corria ao longo no fundo do vale, o prestígio da cozinha baixava na nossa imaginação infantil.

Eram dias felizes!...Todos os dias eram então uma brincadeira pegada com os rapazes da aldeia, banhos seguidos nas águas puras do Bestança.

Caminhos íngremes, de grandes calaus polidos, levavam-nos a aldeias lá para cima. Pelas escadas de pedra metidas nos socalcos chegávamos às uvas melhores, às nêsperas mais doces e ao bestança que corria, cortado por açudes, com a música monótona e constante a servir de fundo às vozes do vale. Chamamentos agudos de mulher, gritos de miudos como nós, o raro chiar dum carro, ou o «canto» que as moças «botavam», ao juntarem-se para irem em grupo, lá mais de cima, dos lados de Tendais, fruta ou madeira à cabeça.

Era o tempo do desbaste dos castanheirosque serviam de suporte às vides de enforcado, a morrerem com o mal da raiz. A madeira vinha até ao barco, alguma cortada em tabuões e transportada à cabeça, a maior parte em troncos puxados por bois. Desse transporte a rasto veio o sulco que muitos caminhos mostravam, a meio da largura.

O Patrício era o homem que mais admirava na aldeia. filho de um antigo caseiro do meu avô, continuava a amanhar alguns campitos perto da povoação. Morava logo abaixo da casa, e bastava um berro para ele chegar à cozinha. Qualquer coisa que era preciso ir buscar à vila, um recado a lugares dos arredores, ele lá ia, sempre bem disposto, o chapeu de abas viradas para cima, a racha de lodão na mão. Os oito filhos que teve todos permaneceram na terra. uma das filhas ainda ficou a servir uns meses no Porto, mas voltou. outra, empurrada pela família, chegou a tentar o mesmo: chegou ao Porto já triste e macambúzia; atravessou a pé a cidade olhando desconfiada as ruas, as gentes e os carros; e só na Boa Vista perguntou a quem a tinha ido esperar, apontando um eléctrico, « o que eram aqueles palanques a andar». Na semana seguinte voltou para a terra. Dos netos creio que não ficou nenhum por lá..

Da nossa aldeia via-se , lá muito longe, o casario de Alhões, e ainda mais para lá, vagamente, o pequeno muro da capelinha das Portas.

Era de Tendais para cima que começava a «serra». para a gente da ribeira a serra era uma terra agreste, onde caia neve, sem mimos de horta, nem fruta nem vinho, onde raramente iam. O Patrício falava dos montes da Gralheira e de piornais e uma ou outra cavada de centeio, um mundo tão diferente do das Pias, sem socalcos, com muitas lameiras sempre verdes, e casas cobertas de colmo.

Teria os meus 17 anos quando pela primeira vez fui à Gralheira. São perto de quatro léguas. Na primeira parte o caminho sobe, sem parar, a encosta íngreme que o esforço de muitas gerações transformou numa escadaria gigantesca de socalcos bordados de uveiras e bardos. Depois os campos entremeiam com tapadas de giestas, deixa-se de ver o vale do Douro, acaba a vide de enforcado, acaba o pinheiro, e entra-se por fim na zona mais plana, de subida suave. Depois um ribeirito, as primeiras lameiras, e por fim a Gralheira.»

(Transcrevi Texto de Fernando Galhano)

publicado por Abel Gonçalves às 10:59
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